sábado, 14 de novembro de 2015

Boa musica brasileira

De Elza Soares ao grupo As Bahias e a Cozinha Mineira: veja artistas que debatem as questões de gênero
Com seu caráter agregador, político e mobilizador de massas, a música é uma poderosa aliada como ferramenta de transformação social










  • Montagem/Divulgação/Instagram
por Luciana Rabassallo
29 de Out. de 2015 às 18:30



Uma questão da prova de Ciências Humanas do Enem 2015 (Exame Nacional do Ensino Médio) reacendeu na mídia e nas redes sociais inúmeros debates sobre o machismo e as questões de gênero. O exercício, que envolveu a célebre frase da escritora francesa Simone de Beauvoir ("Não se nasce mulher, torna-se mulher"), foi citada em uma pergunta sobre as lutas feministas da metade do século XX.

Imediatamente, políticos conhecidos por discursos conservadores como os deputados Jair Bolsonaro (PP-RJ) e Marcos Feliciano (PSC-SP), também utilizaram as redes sociais para condenar a referência à obra O Segundo Sexo, de 1949, em uma prova nacional aplicada para aproximadamente seis milhões de pessoas. A coisa ficou ainda pior quando, na segunda etapa do Enem, o tema da redação foi "A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira".

Segundo a visão dos deputados, fomentar o debate acerca das questões de gênero e fazer com que os jovens que participaram do exame reflitam sobre a violência e o machismo incrustado na sociedade brasileira é uma “doutrinação ideológica da esquerda”. Enquanto o país se divide entre os que pensam como Bolsonaro e os ativistas que trabalham de forma incansável para garantir a igualdade de gênero, a luta chega à diversas formas de expressões artísticas. Entre elas, óbvio, está a música. Com seu caráter agregador, político e mobilizador de massas, a técnica de combinar os sons de forma melodiosa é uma poderosa aliada como ferramenta de transformação social.
Nos últimos meses, inúmeros artistas, que englobam novatos como As Bahias e a Cozinha Mineira até a diva Elza Soares, têm questionado em canções, discursos e projetos visuais as relações de poder configuradas por meio de uma concepção de masculinidade hegemônica, reconhecida e legitimada socialmente. Esses artistas questionam os padrões, as normas estéticas e os códigos de masculinidade que, ao serem chancelados pela sociedade, se tornam corriqueiros. A banalização da violência e da intolerância, que muitas vezes são confundidas com a virilidade masculina, são alguns dos pontos abordados por eles. Afinal os gêneros estão muito além da questão homem-mulher.

Elza Soares e o grito libertário de A Mulher do Fim do Mundo


A cantora Elza Soares, de 78 anos, cujo tempo de estrada ultrapassa a marca de meio século, lançou no começo de outubro o primeiro álbum da carreira dela formado integralmente por canções inéditas. A Mulher do Fim do Mundo, fruto do encontro entre a artista carioca e a estética musical contemporânea de São Paulo, faz uma ode às mulheres brasileiras.

“É um disco feminista”, afirma Elza, que é a personificação de várias minorias - nasceu mulher, negra e pobre. “As letras são fortes e contundentes. Um reflexo da força emanada pelas mulheres que enfrentam um difícil cotidiano”, explica a intérprete, antes de sentenciar: “Ser mulher no Brasil é uma coisa muito difícil”. A biografia da artista ilustra de forma contundente sua própria afirmação: casou-se com 12 anos de idade, obrigada pelo pai; aos 13, foi mãe e, aos 21, viúva, e com quatro filhos para criar.

Entre os temas abordados no álbum está a violência doméstica. “Você vai se arrepender de levantar a mão para mim”, canta Elza no single “Maria da Vila Matilde”. Responsável pela letra, o compositor Douglas Germano conta que sofreu com o problema na infância. “Sou filho de uma Maria. Eu vi essa Maria, minha mãe, apanhar em casa. Era garoto e a única coisa que conseguia fazer era sentir medo de meu pai e dó de minha mãe.”

Segundo Germano, Elza foi a primeira mulher que ele viu, ainda garoto, “falar sobre esse assunto”. A história de “Maria da Vila Matilde” se passa nos anos 1970 – “quando não havia lei Maria da Penha”, apesar de haver uma citação a um celular na letra –, e faz menção ao telefone 180, número de um serviço de denúncia da violência contra a mulher.

A Mulher do Fim do Mundo passeia por fragmentos de uma cidade narrada à luz do núcleo criativo composto por Kiko Dinucci, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos, com direção artística de Celso Sim e Romulo Fróes, e produção de Guilherme Kastrup. As 11 composições são assinadas tanto por integrantes do grupo – formado especialmente para a concepção do disco – quanto por outros artistas paulistas, como Cacá Machado, Clima e José Miguel Wisnik.

Em “Pra Fuder”, Elza narra a libido feminina de forma lírica, direta e libertária: “Olho pro meu corpo sinto a lava escorrer/ Vejo o próprio fogo não há força pra deter/ Me derreto tonta, toda pele vai arder /O meu peito em chamas solta a fera pra correr”. O disco segue com “Benedita”, que conta a história de uma travesti que “leva o cartucho na teta, abre a navalha na boca e tem uma dupla caceta”. Há ainda uma homenagem as mães: “Levo minha mãe comigo /pois deu-me seu próprio ser”, diz a letra de “Comigo”.

Todas as mulheres são representadas pela sabedoria de Elza Soares em A Mulher do Fim do Mundo.

Mulher, de As Bahias e a Cozinha Mineira

Formada em 2011 pelos artistas Assussena Assussena, Rafael Acerbi e Raquel Virgínia, que à época eram estudantes do curso de História na Universidade de São Paulo, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira se prepara para lançar no próximo dia 7 de novembro, no Grazie a Dio, em São Paulo, o disco Mulher, quem tem produção de Deivid Santos - saiba mais aqui.

Com influências de nomes como Gal Costa, Novos Baianos, Amy Winehouse e Ney Matogrosso, o grupo propõe uma discussão acerca do machismo, da misoginia e de qualquer tipo de intolerância, seja ela de cunho religioso, étnico, social ou sexual. No single “Apologia às Virgens Mães”, as poderosas vozes de Assussena e Raquel contrapõem o sagrado e o profano ao reiterar a santidade de todas as mulheres – castas ou não.

Veja o clipe de “Apologia às Virgens Mães”:
“Quantos tempos teceram teus vestidos de lã?
Quantas tranças os tempos fizeram traçar teus cabelos?
Quantos beiços beberam do teu peito o afã?
E dos seios sugaram o sulco sem dor, dos teus zelos
Senhora de saia, de ventre predestino,
Quantos tempos cruzaram num ponto de cruz teu destino?
Oh mães de Jesus, oh virgens, todas virgens
Já choraram teu choro, prantos correm na História
Feito rio que erode do espaço às margens: trajetória
E de um traje contido, de branco e grinalda na média,
Abusaram o desejo do corpo e teu sonho trajou de tragédia
Menina de saia de gozo pré-extinto
Quantos tempos bordaram o calado bordel de teu instinto?
Oh mães de Jesus, oh virgens, todas virgens
Na sacola da feira, tem de besteira feijão
Tem também muitas eras de carga alçada em tua mão
Pudera ter tempo, senhora, tanto tempo pudera e tem
Do fruto da feira, vambora, tempos colheitas de tempo têm
Deles, tantos puseram, oh dona, de peso no saco da feira
Se de Madalena o filho, Madona
Pesa mais: não tem eira nem beira
Não tem eira nem beira, nem eira nem beira.”

LAY e a Bucepower Gang

Como combater a onda de homens que compartilham, sem o consentimento da parceria, fotos íntimas de suas namoradas, esposas, colegas ou amantes nas redes sociais? Remover o véu pudico que encobre o nu feminino é uma boa estratégia. Foi com essa premissa que Lay Moretti criou o tumblr Bucepower Gang, no qual mulheres desconhecidas do Brasil todo podem publicar "selfies de ass" e “nudes” com o intuito de fomentar um debate acerca da liberdade sexual feminina.

Nesse contexto, a artista que mora em Osasco, cidade localizada na zona metropolitana de São Paulo, prepara sua estreia como rapper com o EP #129129, que tem produção de Léo Grijó e deve chegar às plataformas de streaming em 2016. As rimas de LAY pregam a sororidade em canções como “Ressalva”, na qual ela clama por “Mais peitos, menos tretas!”. As influências da artista vão de Dina Di a Lil' Kim, e a estética gira em torno da retomada dos timbres da década de 1990.

Selvática, de Karina Buhr

A cantora Karina Buhr foi dominada por uma urgência inquietante que a impulsionou a trabalhar de forma rápida no sucessor de Longe de Você (2011) assim que recebeu um exemplar de Desperdiçando Rima, livro lançado pela artista em março deste ano. “Tive uma vontade incontrolável de começar a fazer melodias para alguns poemas que estão na obra como, por exemplo, ‘Rimã’ e ‘Desperdiço-te-me’”, conta.

Gravado no Estúdio YB, em São Paulo, o disco Selvática, que chegou às plataformas de streaming em outubro, também tem canções inéditas, como a faixa-título, que é inspirada no livro Gênesis, o primeiro do Antigo Testamento. “Eu leio a bíblia sempre que posso por conta do caráter de fábula que as histórias carregam. Esses textos tiveram grande influência na canção que dá nome ao disco”, explica Karina.

“Fui inspirada pelos animais selváticos e pela maneira como as mulheres são descritas nas narrativas sagradas”. A letra faz uma ode às guerreiras Daomé - único exército formado exclusivamente por amazonas registrado na história recente -, que lutaram contra a colonização do continente africano no século 19.

A artista promove um necessário debate sobre a servidão feminina e os valores históricos que rebaixam a mulher na sociedade. “Hoje eu não quero falar de beleza /Ouvir você me chamar de princesa”, previne Karina na letra de “Eu Sou um Monstro”, faixa que convoca as mulheres para lutarem contra os padrões de beleza pré-estabelecidos. Selvática ainda conta com duas participações especiais: Denise Assunção, que integrou a lendária Isca de Polícia - banda paulistana que agitou a cena musical independente na década de 1980 -, e Elke Maravilha, modelo e atriz.

Ah! E ainda temos a foto do encarte, na qual Karina mostra os seios, que foi banida de redes sociais como Facebook e Instagram.

O feminino e o masculino de Liniker

O grupo Liniker, que recentemente se tornou um viral nas redes sociais com o lançamento do EP Cru, é formado por Guilherme Garboso (bateria), Márcio Bortoloti (trompete), Rafael Barone (baixo), Willian Zaharanszki (guitarra), Bárbara Rosa (backing vocal), Ekena Monteiro (backing vocal) e Renata Santos (backing vocal).

A banda de Araraquara, no interior de São Paulo, tem como característica canções que fazem um profundo mergulho no balanço da soul music. O destaque, contudo, é o vozeirão à Tim Maia do vocalista Liniker Barros, que imprime autenticidade e poder aos singles “Caeu”, “Louise du Brésil” e “Zero”. O visual adotado pelo cantor, que mescla bigode, batom, rímel, brincos, colar e vestido, desconstrói de forma enfática os códigos imputados ao gênero masculino.


As faixas “Louise du Brésil”, divulgada no dia 16 de outubro, e “Zero”, liberada no dia 22, já ultrapassaram as 30 mil visualizações no YouTube. No Facebook, apenas a canção “Zero” já bateu a marca de 800 mil acessos.

sábado, 7 de novembro de 2015

Ney e sua obra.



Ney Matogrosso: “O Brasil está mais careta hoje do que era”
Músico que prepara novos projetos, critica radicalismo no país e é a favor do impeachment.












Ney Matogrosso durante a entrevista. / Mauro Pimentel




Ney Matogrosso (Bela Vista, 1941) senta no canto do sofá, forrado com a bandeira de Pernambuco, com as pernas recolhidas e meio corpo fora, parecendo que a qualquer momento vai cair no chão. É o jeito de alguém pronto para sair da cena rapidamente. Fica mais de uma hora se equilibrando, mas não oferece sinais de querer sair correndo. Ney recebe a reportagem ainda com a luz entrando pelas janelas da sua enorme cobertura no Leblon, no Rio de Janeiro, mas pouco depois o sol se põe e a casa fica quase na escuridão. Ele só acenderá uma luz à petição do fotógrafo minutos antes do encontro acabar.

Nada se escuta na sala a exceção dos gritinhos de uma fêmea de macaco prego que pula de um lado pra outro de uma gaiola gigante. O animal está nervoso, não gosta de mulher perto. Ela gosta do Ney, e de algum ou outro conhecido, e o resto deve ficar longe. Garota, amada e mimada pelo intérprete, representa, paradoxalmente, o que Ney Matogrosso se esforça por combater o tempo todo: os ciúmes. Ele chegou a cantar que os ciúmes são o “perfume do amor”, mas a letra apenas romantizava um dos seus principais defeitos. “As pessoas acham que tudo o que eu canto é o que eu penso. Mas eu não considero isso jamais. Acho o ciúme um inferno, uma coisa horrorosa. Me esforço por superar esse obstáculo na minha vida o tempo todo”, diz o artista.

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Em plena forma aos 74 anos, Ney ainda é tocado e lisonjeado pelas senhoras de cabelos brancos com penteados de salão quando o veem passeando pelas ruas do bairro. “Uma vez, uma encasquetou que queria fotografar meu pau durante um show em que eu tirava tudo. Eu lhe dizia que ela não tinha entendido o conceito, que aquilo não era um strip-tease, mas eu via ela com a câmara em todos os cantos do teatro tentando me pegar”, lembra Ney, entre risadas. O segredo do seu sucesso, até com as mulheres mais caretas que perdem os estribos ao vê-lo subido no palco, nem ele sabe explicar.

Pergunta. Você lançou discos com canções só de Cartola, outro só do Chico Buarque, outro só do Tom Jobim, Ângela Maria, Carmen Miranda... Por que essas escolhas?
Resposta. De Carmen Miranda comecei fazendo um repertório dela, mas não fiquei restrito porque comecei a pesquisar e vi que tinha tanta coisa boa que não precisava ficar só nela. Mas tudo o que era de melhor passava por ela. Era a grande estrela do momento na música brasileira. Olha, eu sou intérprete, eu não sou compositor, então me dou o luxo de desfrutar de tudo o que a música brasileira oferece. Eu não acredito em ficar restrito a um único estilo.

P. Já tentou compor?
R. Já, mas não é a minha. Compus duas letras, mas que eu sou muito crítico delas. Uma que fala de um encontro de noite, que no final você não sabe se encontrou uma pessoa de verdade ou um extraterrestre. E a outra, dos anos 80, se chama Dívida de amor, uma música romântica, mas que fala da morte. Eu gravei as duas, mas nunca cantei.

P. O que tem ficado na gaveta que você ainda gostaria de levar para frente? O projeto de cantar as músicas de Caetano Veloso?
R. Caetano está sempre na minha mira, mas ainda não atirei. Ainda. Mas têm muitas coisas que me interessam. Eu vou fazer agora um show para o que fui convidado por uma diretora de cinema, Ana Carolina [Soares]. Eu vou cantar Carlos Gomes e Villa-Lobos, e um ator vai recitar poemas do Gonçalves Dias, um poeta baiano de 1800 que começa em uma fase romântica e depois ele vai ficando deslumbrado pelo Brasil, pela natureza e pelos índios e acaba sendo uma apoteose ao Brasil... A proposta é levá-lo a seis capitais, gravá-lo, e depois eu tocar minha vida, porque tenho um repertório pop pronto e falta muita pouca coisa para acabar.

P. Você não tem planos de parar? Não se sente cansado?
No começo eu olhava as fotografias e eu não me reconhecia, eu não achava que era eu. Era muito louco.
R. Eu vou parar quando for impedido. Não me sinto mais cansado do que sempre fiquei. O último show que estou fazendo é bem puxado, e quando vi como ficou e fui fazer pensei: “Nossa o que é que fui inventar?”. Mas agora que inventei, eu aguento. Eu tenho muito prazer em fazer, ainda gosto mais de fazer show do que gravar. O único que eu acho chato são as viagens, que eu perco muito tempo.

P. Qual é rumo da música brasileira? Quem você admira neste momento?
R. Criolo é um deles, e também o Tono, um grupo daqui do Rio de Janeiro. Tem pessoas fazendo coisas interessantes. Eu ouço dizer que há uma crise na música, mas não é uma crise na criação, é uma crise pelos obstáculos que você enfrenta para chegar e tocar no rádio. Hoje em dia você tem que pagar pra tocar, antigamente você gravava um disco e você ia para todas as estações de rádio do país.

P. Haverá uma nova geração de Chicos, Caetanos, Marias Bethânia, Neys... Alguém que represente este momento no Brasil?
R. Não sei. Se a gente concluir que viver é um trânsito, as coisas estão se transformando com muita velocidade, então eu não sei onde vai dar. Tudo pode acontecer. No Brasil não para de aparecer artista diariamente, só que muitos vêm e vão, mas é um celeiro artístico, que eu acho maravilhoso. Talvez é o que pode salvar o Brasil, porque quando essa mentalidade artística se expandir será de todos.

P. Há um abismo brutal entre o Ney Matogrosso, exibicionista e ousado do palco e o Ney Matogrosso, tímido e reservado, do dia a dia. Como se relacionam um Ney com o outro?
Existe uma violência agora embutida em todo o mundo, você hoje em dia não pode dar uma opinião.
R. Durante um período grande eu pensei que fosse esquizofrênico, que eu tivesse dupla personalidade. Até que eu observei que, com o tempo, aquilo foi se aproximando um do outro, porque no começo eu olhava as fotografias e eu não me reconhecia, eu não achava que era eu. Era muito louco. Ai fui entendendo que sou eu mesmo, que não tenho esquizofrenia nenhuma, e que no meu trabalho é assim, é tudo extrovertido, e que eu fora do palco não tenho nenhuma necessidade daquela manifestação. Absolutamente nenhuma.

P. E como se explica isso? Por que na hora de fechar a porta essa necessidade de expressão, de reivindicação perde fôlego?
R. Eu não explico, eu aceito. Mas não é que eu deixe de ser reivindicativo. Eu sou uma pessoa que exige direitos, reivindico o tempo todo, mas não tenho necessidade daquela exposição. Eu sou uma pessoa consciente do mundo que eu vivo, da realidade da vida, da realidade dos governos, das igrejas... Sei tudo isso, sou ligado, não sou bobinho. Minha única via para poder expressar tudo o que eu penso do meu país e do mundo é nas entrevistas que eu concedo, e no palco desafio todas as regras. E eu sou ousado, sim, sou atrevido, sim, porque eu preciso ser, porque o Brasil está mais careta do que era.

P. Como você, que enfrentou uma ditadura, pensa assim?
R. Porque é assim. O Rio de Janeiro, nos anos 60, era uma cidade onde de quinta à sábado você podia andar na rua até cinco da manhã que fervia de gente. Quando aparecia uma bicha muito louca na rua, o povo aplaudia. Eu achava aquilo tão engraçado que eu ficava admirado. Eu vinha do Mato Grosso, onde só tinha um [gay] que passava na rua e só faltava o povo jogar pedra. Isso era de uma maneira geral, o Brasil era mais tolerante com todas as diferenças e foi ficando intolerante. Quem instituiu a violência no Brasil foi a ditadura militar e o povo passou a ser violento. Existe uma violência agora embutida em todo o mundo, você hoje em dia não pode dar uma opinião. Nas redes sociais as pessoas caem furiosas. Eu não tenho rede social porque não me interessa o que as pessoas estão pensando, porque as pessoas estão loucas, estão radicais. Como a gente vai ser um país com pensamento radical? Mas você vê isso em tudo. Na política estamos chegando à beira de uma guerra civil por causa dessa gente ridícula.

P. De que gente ridícula?
R. Do Governo ridículo que nos governa. Toda essa gente tem que ir para a cadeia. Você não pode deixar no poder um Governo que saqueia o país. Esse juiz Sergio Moro está dignificando a Justiça no nosso país. Porque quem rouba é ladrão e ladrão tem que ir para a cadeia, não é só pobre que tem que ser preso. Eu não estou dizendo que nunca roubaram, mas eles chegaram com tanta sede ao pote que foram descarados. Vamos parar, não podem roubar mais. Eu sempre falei o que eu acho, se eu não me privei de dar minha opinião nem na ditadura porque eu vou me privar agora? Agora que me engulam, não dizem que é uma democracia? Vamos ver se é mesmo.

P. Você é a favor do impeachment da presidenta?
R. Sou. Se se demonstrar sua culpabilidade, ela deve sair.

P. O que levou ao jovem Ney a servir na aeronáutica?
R. Era o único pretexto que eu tinha para sair de casa em aquele momento. Era 1959 e nem filho homem saia de casa, só saia casado e eu tinha 17 anos. Não queria mais viver nessa casa, não queria mais viver mais com aquele pai.
Eu descobri muitos anos depois que eu tinha criado um manto de chumbo no meu coração, para eu não necessitar de ninguém e de nada.

P. A relação com seu pai melhorou com os anos? Ele chegou a te ver subido num palco?
R. Depois de muitos anos ficamos amigos. Ele me viu várias vezes, só não viu Secos e Molhados. A primeira vez que ele me viu foi no meu primeiro disco solo. Minha irmã me disse que ele tomou remédio para o coração porque ele não sabia o que ele ia ver. Ele assistiu o show e no final falou para minha irmã que ele estava totalmente enganado, que eu era um grande artista. Mas para mim ele não disse.

P. Você chorou ao ouvir isso?
R. Não. Não sou desse jeito. Eu sou muito pé no chão, não é que eu não seja emocional, mas não sou uma pessoa que chora fácil. Eu tive que criar muita defesa para conviver no mundo, eu saí criança de casa. E quando eu saí, eu fui conviver num quartel só com homens, tendo que delimitar o meu território o tempo tudo porque se não seria invadido. Eu descobri muitos anos depois que eu tinha criado um manto de chumbo no meu coração, para eu não necessitar de ninguém e de nada.

P. Isso não dificultou seus relacionamentos com as pessoas?
R. Sim, até que tomei daime (ayahuasca) durante um ano e meio. Ai eu descobri que eu tinha feito isso comigo mesmo conscientemente e não me lembrava. Eu cheguei a ver o momento em que tomei essa decisão e foi assim: “Eu não preciso de amor de pai. Eu não preciso de amor de mãe. Eu não preciso do amor de ninguém. Eu não preciso do mundo. Eu quero que o mundo se foda. Eu vou tocar minha vida”. Um dia, depois de 12 horas tomando daime, deitei na minha cama e percebi, veio aquela memória e meu peito escancarou e vi raios verdes jorrarem dele. Parecia que tinha tomado um ácido. Aí eu fui mudando, as pessoas me perguntavam o que estava acontecendo comigo.

P. E você ficou um doce?
R. Eu sempre fui doce, mas eu não me permitia ser. As pessoas se aproximavam de mim, mas eu cortava. Se eu namorasse alguém uma noite, se quisesse me ver no dia seguinte eu já cortava, não tinha espaço para isso. Tinha espaço para sexo, sem compromisso, eu fugia de qualquer envolvimento, até que teve uma vez que eu não consegui fugir...
P. E o que aconteceu?
R. (Risos) Admiti a possibilidade. Eu entendi que era possível ter uma relação com alguém duradoura.

P. Estamos falando do mesmo alguém (o Cazuza)?
Eu ouço dizer que há uma crise na música, mas não é uma crise na criação, é uma crise pelos obstáculos que você enfrenta para chegar e tocar no rádio.
R. Sim.

P. E esse foi seu grande e único amor?
R. Não, não foi o único. O primeiro, esse que me desestabilizou foi um grande amor, mas eu tive três grandes amores. Com ele, eu tive a sensação de que eu gostaria de viver, ele me abriu, e depois eu tive um relacionamento de 13 anos. De lá para cá sou uma pessoa normal, não sou ansioso por relacionamentos, não sou fechado, mas não procuro. Algumas vezes acontece. Eu preciso da solidão e não consigo viver sem meus momentos sozinho.

P. A sociedade brasileira evoluiu no debate cidadão de questões importantes como os direitos dos homossexuais, legalização das drogas, aborto... Embora as leis continuam sendo rígidas nesse sentido. No caso da Aids, no entanto, o assunto continua sendo tabu em todas as esferas, e é sinônimo de desinformação e preconceito. Qual é sua relação com o tema? Por que parece que esse não é também um problema da sociedade?
R. A Aids está atingindo a população de 15 a 20 anos. Eles não entendem porque eles não viveram. Eu tive uma semana em que fui três vezes a enterrar amigos. Eles acham que não mata, que tomam remédio e pronto, meu deus! É tão simples usar uma camisinha, não sei qual é o problema. Mas é verdade que não se fala mais, nem as autoridades.

P. Você alguma vez se preocupou por ter contraído a doença?
R. Esse com quem eu morei 13 anos, morreu da doença e quando eu fui fazer o teste, para minha enorme surpresa, eu não estava contaminado. Eu perguntei para vários médicos como é que eles explicavam que após ter contato com o vírus eu não era portador. Me disseram que não tinha explicação. Agora, eu não dou mole, achando que eu sou imune. Antes era vida louca para todo o mundo, camisinha era só para quem não queria ter filho.

P. O que você opina da onda conservadora e esse ressurgimento religioso que domina parte dos debates no pais?
R. O Brasil é um país laico, mas aqui deixaram essa infiltração acontecer. Eu acho que o que vai acontecer é cobra comendo cobra. Mas o povo tem que se mexer. Não existe esquerda e direita mais. Aqui ultrapassamos a ideologia política, aqui se trata de malfeitores e o povo tem direito de colocar eles para correr.

P. No filme Ralé, que Helena Ignez acaba de estrear com você como protagonista, vocês tocam vários assuntos da sexualidade e da vida. Me diga o primeiro que vem na sua cabeça sobre eles. Liberdade sexual?
R. Todas as liberdades.
Não existe esquerda e direita mais. Aqui ultrapassamos a ideologia politica, aqui se trata de malfeitores e o povo tem direito de colocar eles para correr.

P. Enfrentar a velhice?
R. Eu não enfrento a velhice, eu a aceito. Convivo com a possibilidade da morte bem tranquilamente. Eu não tenho medo de nada.

P. O amor livre como forma de relacionamento.
R. Eu já experimentei nos anos 70. É interessante mas tem uma hora, pode ser que agora as pessoas estejam mais acostumadas com o contexto, que alguém tinha ciúme e acabava. Era interessante como exercício. Não era fácil, porque todos nós tínhamos ciúme. Eu fui o que aceitei o terceiro e para minha enorme surpresa eu aceitei com tranquilidade, porque eu pensava que nunca seria capaz. Mas eu aceitei e gostei, mas aí o outro não gostou que eu gostasse, né?